Gosto de escrever (e mais ainda de ser lido…) e esta minha veleidade tem me levado a incursões pela crônica e pela poesia, além de alguma produção técnica também. Mas me faltava alguma passagem pelo teatro, arte que adoro, mas com a qual careço de intimidade, seja como expectador (pouca) ou autor (nenhuma). Mas não é que descobri, escondido em uma pasta do Windows, um texto teatral de minha autoria, produzido há pelo menos dez anos? Era para ter sido um exercício em classe, de um curso de gestão em saúde que produzi para uma instituição privada de ensino. O curso não aconteceu e as horas que passei preparando aulas e outras atividades didáticas, além de me reunindo com a equipe do contratante, não me foram retribuídas materialmente. Mas pelo menos me diverti escrevendo, particularmente este “drama sanitário em ato único”, além da melancólica história da gerente Filomena, sob a forma de um pequeno conto, que ora lhes apresento.
SERIA BANAL, SE NÃO FOSSE TRÁGICO…
(Drama sanitário em ato único)
Ambiente:
Sala de espera de uma pequena unidade de saúde. Pintura mal cuidada, móveis despencados, paredes cobertas de cartazes toscos, feitos à mão, nos quais se lêem proibições diversas (ex: “não estamos marcando consultas”, “não cuspir no chão”, “é proibido trazer cachorro”, “Dr. Fulano não atende nas quartas feiras” e outros similares). Os clientes estão sentados em filas paralelas de cadeiras de plástico, como se estivessem em um ônibus, de forma que ninguém fita o rosto do outro, só a nuca. Ao fundo duas portas, com indicativos de “vacinas” e “consultório médico”; há também uma porta lateral que é a entrada da unidade. Um filtro de água com um único copo, de alumínio, fica ao fundo e é frequentemente é utilizado pelas pessoas na sala de espera. Um relógio na parede marca oito horas. Não há quaisquer objetos de decoração no ambiente, que aliás está carente de uma boa varrida…
Personagens:
– Narrador: voz em off
– Anabela, a enfermeira, jovem de classe média, bem vestida;
– Clarice, a agente comunitária de saúde, também jovem, mas com aparência de pessoa de classe social mais baixa;
– “Doutor” – o médico da unidade (assim mesmo, sem nome revelado), jovem, padrão classe média, vestido de branco;
– Anestor: um burocrata da saúde;
– Don’Maria – uma cliente calada e quieta a um canto, com expressão de sofrimento no rosto e aparência muito modesta;
– Zé Vereador – líder comunitário (que na verdade não é vereador, mas sim candidato permanente a sê-lo);
– “Louro José” (José Pereira): um radialista, dono de um programa sensacionalista, que visita a unidade esporadicamente para levantar matérias para seu programa;
– “Coro” conjunto de aproximadamente dez pessoas, adultos e crianças, que estão sentados na sala de espera e que intervém na ação quase sempre de forma desordenada, quase cacofônica.
Narrador | Respeitável público! O que os senhores e as senhoras vão assistir agora talvez faça parte da paisagem dos serviços de saúde Ou será que não faz? O público poderá dizê-lo depois… Estamos em uma unidade de saúde da família, situada na periferia de um grande centro urbano brasileiro. Assistam à cena com atenção e depois reflitam sobre ela. Luzes, ação! |
Clarice | (entrando na sala) Ah, oito horas da manhã… Bom dia gente! (silêncio). Eu disse bom dia…. (silêncio) BOM DIA PESSOAL! |
Coro | Bom dia, dona…. (vozes discretas, sem muita ênfase) |
Clarice | Enquanto a gente espera o atendimento começar eu, vou fazer pra vocês hoje uma palestra sobre um assunto muito importante para a nossa comunidade… |
Coro | Lá vem de novo… (vozes isoladas) |
Clarice | Vocês já sabem do que se trata, não é? É a dengue que nos ataca de novo! |
Coro | – Dengue, de novo?
– Aqui mesmo tá cheio de mosquito… – E a consulta, demora muito? – Que horas o doutor chega? – Olha que eu ainda tenho que fazer almoço em casa… |
Clarice | Calma gente, com calma se resolve tudo. Mas como eu ia dizendo, as águas paradas…. (é interrompida pela chegada de Anabela) |
Anabela | Oi gente, bom dia pra todo mundo, oi Clarice! Ah, o trânsito estava horrível hoje… E ainda tive que me demorar na creche do bebê, pois ele chorou para entrar. Sabem como é, criança, né? (ela entra pela porta do consultório, para deixar sua bolsa e vestir o jaleco) |
Clarice | Pois é, como eu dizia… (é novamente interrompida por Anabela) |
Anabela | (com uma papeleta nas mãos) Vamos lá, quem chegou primeiro? |
Coro | – Estou aqui desde as seis horas!
– Eu já tinha vindo ontem e vocês mandaram voltar… – Eu cheguei estava escuro ainda! – Pois eu só não cheguei mais cedo porque tive que despachar dois guris para a escola e ainda arranjar a marmita do marido. – Xi, todo dia a mesma lenga-lenga… – Tenha paciência, dona, se eu estivesse sadia até que tinha acordado mais cedo, mas do jeito que eu estou, botando sangue… – Eu só vim pra pegar um atestado… |
Anabela | Vamos organizar, assim não dá…. Quem está se sentindo realmente mal? |
Coro | – Eu!
– Eu tô mais! – Eu aqui! – Eu, que não estou parando de pé! – Eu! – Mas eu só vim pra pegar um atestado… |
Anabela | É pessoal, assim não dá realmente… Só mesmo a gente voltando a distribuir senha de véspera. Quando era assim funcionava melhor, mas o Zé Vereador reclamou ao Secretário e aí ficou deste jeito, muito pior, no meu entendimento… |
Clarice | Don’Maria, a senhora vai ficar calada? Desde ontem está assim, só eu já fui na sua casa duas vezes! (Virando-se para os clientes): Don’Maria é minha vizinha, viu gente. Uma pessoa muito boa! |
Anabela | Então tá, Clarice, dá uma senha pra Don’Maria, mas não se esqueça das crianças e dos idosos que ainda podem aparecer por aqui hoje |
Coro | (Se repetindo):
– Mas eu estou aqui desde as seis horas! – Eu já tinha vindo ontem e vocês mandaram voltar… – Eu cheguei estava escuro ainda! – Pois eu só não cheguei mais cedo porque tive que despachar dois guris para a escola e ainda arranjar a marmita do marido. – Xi, todo dia a mesma lenga-lenga… – Tenha paciência, dona, se eu estivesse sadia até que tinha acordado mais cedo, mas do jeito que eu estou, botando sangue… – Eu só vim pra pegar um atestado… |
Anabela | Paciência! |
Clarice | Paciência… |
Coro | – Vamos ligar para o Louro José… |
Narrador | Quem será este novo personagem, Louro José? Será que vem direto da TV? Deve ser muito poderoso… |
Clarice | Não façam isso, ele só quer aprontar confusão… Não se lembram que a Miloca, minha colega foi demitida por causa dele? |
Coro | – Alguma ela deve ter feito…
– Aquela jararaca? – Dizem que foi mandada embora porque o marido brigou na rua com o Zé Vereador, essa é que a verdade… – Chamem o Louro! Chamem o Louro! O Louro! – Vocês vão ver o que é bom… |
Anabela | Vamos organizar então. Uma boa organização é a base de tudo! Clarice, enquanto eu vou lá dentro fazer umas fichas numeradas, você continua sua palestra. |
Clarice | Certo, Anabela, mas como eu dizia, a camisinha é muito importante, tanto para o homem como para a mulher… |
Coro | – (Voz de galhofa) Você falava era de dengue, minha filha…
– Pois eu já engravidei com camisinha e tudo… – Camisinha não resolve nada quando o que falta é a vergonha… – Vamos ao que interessa: a que horas este médico chega? – O médico? Cadê ele? – Cadê? Vamos, vocês vão ficar aí escondendo o jogo? |
Anabela | Paciência! |
Clarice | Paciência… |
Coro | – PACIÊNCIA???
– É isso todo dia! – Pior que é o terceiro médico que eles contratam, só neste ano… – É ninguém quer vir aqui, ninguém quer saber da gente… – Bom mesmo era o Dr. Benedito, vinha só dois dias na semana, mas cada vez que vinha atendia mais de trinta pessoas…. – E dava receita pra todo mundo… – Que nada, ele era bom de encaminhamentos, nunca resolvia nada… – Tão educado do dr. Benedito… Pena que foi embora… |
Louro José | (entra esbaforido pela porta lateral) E aí gente boa! Tudo em riba! José Pereira, o Louro José, do programa O Povo no Radio, está aqui para defender vocês, podem começar a falar, deixa só eu ajeitar meu gravador… |
Coro | (algumas pessoas levantam das cadeiras e rodeiam o radialista, o ambiente se agita, a cacofonia se intensifica)
– Uma pouca vergonha isso aqui! – Olhai o relógio, já são mais de dez horas e nem sinal do doutor! – Tá tudo assim, já viu o buraco na minha rua? Vai fazer aniversário este mês! – E o ônibus, agora só está passando de hora em hora! E mesmo assim, umas latas velhas… – E tem mais essa agora: aumentou o IPTU! Queria saber o que eles fazem com o dinheiro lá na Prefeitura… – A gente vem atrás de consulta e elas só sabem fazer palestras! – Emprego que é bom nada, já fui na Prefeitura umas três vezes e eles me enrolam – na hora de pedir o voto a conversa é outra… |
Louro José | Calma gente, eu sou um só! |
Anabela
Clarice |
(Se entreolhando e se manifestando em uníssono): Ai meu Deus! Haja paciência… |
Louro José | (Atendendo o celular, com jeito de receber uma notícia importante, falando bem alto): É MESMO! ESTOU INDO JÁ PARA AÍ…. AGÜENTA! (volta-se para o público): gente, desculpem, mas estão me chamando, a polícia acabou de prender um bandido do outro lado da cidade, parece que é aquele esquartejador de domésticas… Não posso perder essa, com licença, depois eu volto, tá bem? (sai como entrou: intempestivamente) |
Don’Maria | (dolorosamente dá um gemido, em seu cantinho) |
Narrador | Essas moças vão acabar perdendo o controle da situação…. Será que não poderiam fazer algo para acalmar esta gente? Alguém podia avisar pra este cara que tem gente morrendo aqui e agora? Opa, vai entrar mais um outro personagem! |
Anestor | (entrando intempestivamente pela porta lateral, dirige-se a Anabela): a senhora entregou os boletins com atraso pelo segundo mês consecutivo… Além disso, já falei que o dia de pedido de material é o cinco de cada mês… |
Anabela | (olhando para Clarice, de forma cúmplice, disfarçando) Nem dá bom dia… |
Anestor | (percebendo o lance, volta-se para a platéia, entre solícito e pomposo) Bom dia, minhas amigas e meus amigos, muito prazer! Anestor Borba, subchefe substituto da seção administrativa da Prefeitura Municipal e assessor de sua excelência o Prefeito! |
Anabela | … é para dar bom dia aos nossos usuários, sr. Anestor… |
Anestor | ah, sim, bom dia, meninas! Bom dia minha gente… |
Clarice | (murmurando) menina é a vovozinha… |
Anestor | (pigarreia, dirigindo-se ao público na espera) E aí meus amigos e amigas, todo mundo satisfeito com a nossa equipe de saúde da família? Podem ter certeza que o Prefeito faz o possível e o impossível para atender este bairro! E olha que ele quase não teve voto aqui… |
Coro | – Pois não precisava tanto; devia fazer só o necessário… Já estaria bom demais… |
Anabela | (fazendo pose de quem vai fazer uma intriga – pisca para Clarice): Você nem imagina, Anestor, quem acabou de sair daqui… |
Anestor | Quem? |
Anabela | Vou dar uma dica: currupaco – paco! |
Anestor | Louro José!? Aquele safado! Aquilo quer mais é pegar o dinheiro da gente… Pagou, fala bem; não pagou, esculhamba! … Mas ele disse alguma coisa? Entrevistou alguém? (não espera a resposta) Deixa eu ligar para o Prefeito… (retira-se para um canto e aciona o celular, começando a conversar em voz alta e cheio de exclamações) COMO? O QUÊ? MAS QUE FDP! Deixa comigo, senhor prefeito (agora mais discretamente) |
Clarice | Este aí quer ver o diabo, mas não quer ver o Louro… |
Anestor | Preciso sair, o safado já bateu na escola da Vila Prudente, vou pra lá… Adeus. (sai como entrou: intempestivamente) |
Anabela | Lá vai ele, sujeito sem repertório, o mundo pode acabar que ele só quer falar de papelada… Medo de ficar sem ver o dinheirinho do SUS, com certeza… |
Don’Maria | (produz outro gemido, mais alto e mais sentido, em seu cantinho) |
Coro | – Esta mulher aqui está gemendo como se fosse morrer!
– O médico, onde está o médico? – Caramba, acabou a água do filtro! – E o banheiro está entupido… – Tem uma barata aqui… – E quanto mosquito, meu Deus! – Pra mim chega, vou pegar um ônibus e me mandar para o Pronto Socorro… – Dona Anabela, a senhor não pode fazer nada pela gente? |
Anabela | (meio se desculpando) Eu sou enfermeira, gente… |
Don’Maria | (geme mais uma vez e se levanta cambaleando, em direção ao banheiro, parecendo estar muito mal) |
Narrador | Parece que finalmente chegou o ser mais esperado: o Messias? Não: O DOUTORZINHO! Já não era sem tempo… Vamos ver se ele não fala o que acabamos de ouvir (imitando Anabela): “eu sou só um doutorzinho, gente” |
Doutor | (entrando intempestivamente no recinto): bom dia para todos e para todas! |
Coro | – bom dia Doutor (modo: allegro, ma non troppo…) |
Doutor | Larissa, não perca de vista o meu carro aí fora, ok? Você sabe, ele é novo e esta molecada daqui é de amargar… |
Clarice | O meu nome é Clarice… (faz cara de indignada, mas mantém-se em silêncio quanto ao carro) |
Anabela | Fica tranqüila, depois eu explico pra ele, isso não tem cabimento! |
Clarice | Mas é assim todo dia… Um dia me chama de Alice, outro de Doralice ou de Larissa. Poxa! É que eu preciso deste emprego, você sabe. Além do mais, este homem não aprende meu nome de jeito nenhum! E nem o que posso e não posso fazer aqui na unidade? Que saco! |
Anabela | (voltando-se para o público) Então, gente, vamos começar o atendimento? (em seguida faz um gesto para conter duas ou três pessoas que se dirigem apressadamente para a porta do consultório) |
Doutor | (surge à porta do consultório) entra o primeiro! |
Anabela | (conduz o primeiro cliente e organiza uma fila junto à parede) |
Coro | – Finalmente vai começar
– Mas nem bem entrou um, já saiu e chama o outro? – E o outro, o outro e o outro… – Desse jeito, até eu vou ser médico… – Ah, prefiro assim, tem uns doutor aí que especula demais a vida da gente – Piores são uns que nem receita dão, é só banhozinho, chazinho, relaxamento, estas coisas… – Também é cada receita que a gente não tem grana pra comprar… – Lá vou eu, até que enfim, Deus me ajude! |
Doutor | (retorna à porta depois de fazer a fila andar, em menos de uma hora, consulta o relógio no pulso) Quem mais? (repete) QUEM MAIS? |
Anabela | É parece que acabou por hoje, mas agora o senhor prometeu me ajudar a completar os boletins do mês passado e assinar também aqueles papéis… |
Doutor | Dona Anabela, me desculpe, mas com o que me pagam aqui não dá pra ficar mais, tenho clientes me esperando no consultório, volto à tarde… Bom dia a todos a e a todas! (e sai igual um pé de vento pela porta lateral) |
Narrador | (como quem conta um segredo) Hei, parece que falta alguém… no banheiro… Doutor! Doutor! (silêncio). Xiiii, já se mandou… |
Clarice | (volta-se para o público remanescente, como se estivesse contando um segredo) ele é um médico de família, contratado para trabalhar em dois períodos, vocês sabiam? |
Coro | – De família?
– Família de quem? – Dos que estão esperando lá no consultório dele, com certeza… – (risos) – Saudades do Dr. Benedito! |
Anabela | (faz uma cara desolada…) |
Zé Vereador | (entra intempestivamente pela porta lateral) Cadê ele? |
Clarice e Anabela | Zé Vereador! O que quer aqui? Ele quem? |
Narrador | E este agora, quem será? |
Zé Vereador | Louro José, claro! (dá-se conta que não cumprimentou ninguém e vira para a platéia – não para os usuários) Bom dia! Eu sou José Astrogildo, presidente dos moradores daqui… |
Clarice | O Louro? Entrou e saiu que nem um pé de vento… |
Zé Vereador | Mas eu avisei pr’aquele (solta um palavrão) que precisava falar com ele… E era muito urgente! Só me resta ir embora. Adeus. |
Anabela | “Bom-dia” aqui é artigo raro… |
(ouve-se neste momento um ruído e um gemido forte dentro do banheiro) | |
Clarice | Don’Maria! DON’MARIA!!! |
Narrador | E agora? |
Anabela | Ai meu Deus! |
Clarice | O que vamos fazer Ana…? |
Anabela | Chamar a ambulância |
Clarice | Mas o orelhão não está funcionando… |
Anabela | Ligue do celular! |
Clarice | Está sem crédito… |
Anabela | E eu esqueci o meu em casa |
O relógio | (som ampliado) Tic, tac, tic, tac, tic tac… |
(silencio constrangedor) | |
Clarice | E agora? |
Anabela | E agora, meu Deus!? |
Narrador | Respeitável público, chegamos ao final de nosso – desculpem – espetáculo… Então? Será que isso faz parte da paisagem dos serviços de saúde ou é apenas exceção? Dá pra consertar ou isso faz parte do destino dos serviços de saúde no Brasil? É banal? Ou seria trágico? Vamos pensar sobre o assunto! |
*****
GERENTE À BEIRA DE UM ATAQUE DE NERVOS… (E AGORA FILOMENA?)
Filomena é gerente de uma unidade de saúde ambulatorial, voltada para atenção básica, em uma cidade de porte médio. Ela tem muito orgulho do que faz, pois foi selecionada para um curso de gestão em saúde dentre quatro outros concorrentes e foi considerada aluna destacada, sendo a primeira a ser nomeada para a gerência, que exerce já há quatro anos. O que faz Filomena se sentir uma gerente especial é o fato de que, ao contrário da maioria de seus colegas gerentes, ela não tem formação específica na área de saúde, pois é administradora, embora tenha uma longa carreira no setor, como encarregada de faturamento em um hospital durante oito anos, sendo que em tal condição concluiu sua faculdade.
Filomena é o que se poderia chamar uma pessoa aplicada. Orgulha-se de conhecer na ponta da língua o estatuto do servidor público e, além dele, todas as disposições normativas existentes com relação aos serviços. Domina com perfeição o jargão técnico da contabilidade, particularmente no que tange ao faturamento no SUS. Ela costuma dizer que não toma decisões de nenhuma espécie sem consultar o que chama “meus livros de cabaceira”: o estatuto do funcionário, a coletânea de normas do SUS, A LEI 8080 e até mesmo a Constituição de 1988, entre outros. Além do curso de gerente já fez inúmeros outros de menor porte, particularmente na área de relações humanas no trabalho e logística, campos pelos quais passou a ter especial predileção.
Filomena está muito chateada… Um programa sensacionalista matinal de TV, muito apropriadamente chamado “Barra pesada”, deu grande destaque à reclamação de um usuário da unidade que ela dirige, denunciando falta de determinado medicamento essencial nos estoques. Filomena sabe que tal medicamento não deveria estar em falta, pois não só é de uso contínuo por parte de muitos pacientes como, na história da unidade, pelo menos depois que ela assumiu a gerência, isso jamais aconteceu. Filomena sempre cuidou das listas de solicitações à SMS com a maior atenção e acredita que desta vez talvez tenha falhado o esquema que montou, delegando a uma auxiliar (Fabiana) a elaboração da lista mensal de pedidos, há cerca de 15 dias. Ela só poderia intervir sobre o problema depois de passado o final de semana, pois a notícia lhe alcançou numa sexta feira, quando tomou conhecimento do problema em casa, por intermédio de um de seus familiares, pois estava de licença, compensando horas extras da última campanha de vacinação.
Filomena já até marcou uma consulta com o psiquiatra no seu plano de saúde, pois se sente muito deprimida. Mas a espera que lhe anunciaram é muito grande. Meses…
Na segunda-feira, Filomena é a primeira a chegar em sua unidade, disposta a esclarecer tudo. Mas logo de início é lembrada que Fabiana foi liberada (por ela própria) para compensar suas horas-extras e mais outros acertos e que só retornaria ao trabalho dentro de uma semana. Ela então resolve ir pessoalmente ao órgão central, pois tem convicção que este tipo de coisa é melhor resolver pessoalmente.
Entretanto, vê-se às voltas com outro contratempo: é dia de fechar alguns dos boletins do sistema de informação em saúde, uma tarefa árdua e morosa, pois o único computador disponível na unidade tem pelo menos meia década de uso e é de baixa potência, além de estar muito sobrecarregado de dados. Filomena se resigna a aguardar mais dois dias para executar a providência que tem em mente, pois sente que sua presença no serviço agora é muito importante, principalmente depois do noticiário depreciativo da TV.
Como o assunto mobiliza as atenções de todos os funcionários, no final da tarde Filomena recebe uma informação nova, originada de uma funcionária da limpeza, Adelaide, que lhe pede total sigilo a respeito do assunto. Segundo Adelaide, tudo o que aconteceu e que foi parar na imprensa pode não ter passado de uma armação, tendo em vista que uma usuária do serviço, por nome Maria, havia se desentendido com Fabiana há algumas semanas e, na ocasião, algumas pessoas ouviram a mesma dizer que “um dia se vingaria”. Consta também que o marido de Dona Maria, de nome Alcebíades, líder comunitário na região, vem se sentindo agastado com a unidade, fazendo não raramente críticas ácidas aos serviços prestados pela mesma e às pessoas que ali trabalham, acreditando-se que na origem de tal comportamento esteja o não-aproveitamento de algumas pessoas indicadas por ele para vagas de Agentes Comunitários de Saúde recentemente abertas.
Filomena acha que a denúncia tem razão de ser, pois dona Maria é dessas pessoas que freqüentam a unidade muito amiúde e, embora se dê bem com muitos funcionários e particularmente com os médicos, com quem tem relações especialmente amistosas, não poupa outros membros da equipe de investidas, às vezes até caluniosas. Em uma outra ocasião, uma denúncia trazida por esta senhora, foi considerada como uma retaliação pessoal contra uma funcionária, vizinha de dona Maria, acusada por esta de “estar paquerando-lhe o marido”.
Enquanto se entretém com tantas preocupações, Filomena acompanha cuidadosamente o fechamento dos boletins de informação e uma vez completado o serviço, não mais na quarta feira, como pretendia – pois houve falta de uma pessoa que a ajudava – mas sim na quinta, consegue ir até o órgão central resolver a pendência que lhe atormentava já há quase uma semana.
Aí, então, sua ansiedade só teve motivos para aumentar, pois não só o “Barra Pesada”, que havia denunciado o problema em primeira mão, como outros programas sensacionalistas de radio, não falavam de outra coisa, até acrescentando detalhes comprometedores como, por exemplo, de que em inúmeras ocasiões ocorreram trocas de medicamentos no ato da entrega a pacientes, levando algumas pessoas a piorarem de seus sintomas. Filomena estava, então, literalmente “à beira de um ataque de nervos.”
Na Secretaria viu suas suspeitas se confirmarem: o medicamento realmente estava fora da lista encaminhada duas semanas antes. Ela se ofereceu para levá-lo pessoalmente à unidade, já, mas o responsável pelo almoxarifado lhe faz ver que isso contrariava as normas da Secretaria, e que ela teria de esperar pela nova data de entrega prevista, dentro de dez dias aproximadamente.
Filomena lamenta, mas, afinal de contas, como ela era defensora intransigente da máxima de que “normas são normas”, acata a decisão de seu colega almoxarife e resolve aguardar pacientemente a normalização do atendimento.
Seus problemas, entretanto, estavam longe de acabar…
No dia seguinte, o Ministério Público entra na história, exigindo do Secretário uma explicação para a falta de medicamentos na unidade. Filomena, naturalmente, recebe a incumbência de justificar o acontecido, por escrito e em prazo de 24 horas…
Neste mesmo dia, o “Barra Pesada” manda um repórter à unidade para entrevistar Filomena e não a encontra, já que ela estava na Secretaria preparando o relatório que o gestor lhe pedira. O repórter diz que vai aprontar um escarcéu sobre a ausência da responsável, “em pleno horário de trabalho”…
Alguém lhe liga anonimamente para dizer que existiria uma rixa entre Adelaide e dona Maria, que também eram vizinhas e tinham desavenças antigas, não sobre maridos, mas a respeito de demarcação dos respectivos terrenos…
Para completar o quadro, Fabiana reaparece e alega que o medicamento não foi solicitado simplesmente porque havia quantidade suficiente em estoque (mostra provas…) e que deve ter ocorrido algum desvio…
Ato contínuo, o almoxarifado central se manifesta, pedindo que Filomena compareça para depor em uma comissão de inquérito visando esclarecer possível desvio de medicamentos na unidade…
Filomena, que finalmente teve a sua hora marcada com o psiquiatra (ou seria psicólogo?) Doutor J. Pinto Fernandes, que ainda não havia entrado na história, é obrigada a desmarcar a consulta.
Pano rápido…